domingo, 8 de agosto de 2010

No Verão é melhor um poema triste

Otto Van Veen, L'Artiste et sa famille
(1584, Musée du Louvre)



GATO EM APARTAMENTO VAZIO

Morrer - isso não se faz ao gato.
Pois que há-de um gato fazer
num apartamento vazio.
Ir arranhando as paredes.
Roçar-se por entre os móveis.
Por aqui nada mudou
mas está mais que mudado.
As coisas estão no sítio,
mas os sítios outros são.
E nem se acende a luz pela noitinha.

Ouvem-se passos nas escadas,
todavia, não os tais.
A mão que põe no pratinho o peixe
também não é a que antes punha.

Algo aqui não acontece
às horas que acontecia.
Algo há aqui que não corre
como devia correr.
Alguém aqui esteve, esteve,
e agora teima em não estar.

Vasculhados todos os armários.
Percorridas todas as prateleiras.
Uma vez verificado o chão sob a alcatifa.
Contra todas as proibições até,
espalhados os papéis.
Que é que fica ainda por fazer.
Dormir e esperar.

Deixa-o só voltar,
deixa-o lá mostrar-se.
Há-de aprender
que com um gato não se brinca assim.
Há-de um bicho ir-se chegando para perto,
como quem não quer a coisa,
bem devagar,
muito sobre as patinhas ofendidas.
E ao princípio nada de saltar nem de miar.

Wislawa Szymborska, Paisagem com grão de areia
(Relógio d'Água, 1998, trad. de Júlio Sousa Gomes)

     Há poucos poemas para mim mais tristes do que este. No quadro de Van Veen, a extraordinária semelhança de todos os rostos, incluindo o do gato, é uma das melhores metáforas de família que conheço.

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